segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Saudades da Biblioteca Pública

Por Sérgio Brito

Elevando-se, imponente, em seu estilo neoclássico, na vasta área do antigo Largo do Quartel, margeado pelas avenidas Gomes de Castro e Silva Maia, em São Luís, a Biblioteca Pública “Benedito Leite”, inaugurada em janeiro de 1951 pelo governador Sebastião Archer da Silva, possuía dimensões consideradas faraônicas para a época.


Com três pisos, sem contar o subsolo, que não sei se, a essa ocasião, abrigava a seção de jornais, o prédio possuía amplas e bem-mobiliadas salas de leitura, arejadas pela brisa constante que soprava do rio Anil, fazendo cantar frondosos oitizeiros, que ainda hoje estão lá. Pena que, agora, esterilizados pelo dióxido de carbono, já não dêem frutos, e sua sonoridade seja abafada pelo barulho de intenso tráfego de veículos. 

Quase toda a ala direita do primeiro andar era ocupada pela biblioteca infantil, com suas estantes, mesas e cadeiras de pau-marfim, artisticamente trabalhadas. Ainda bem nítidas na memória, guardo também as feições de Dona Celuta, simpática funcionária que me acolheu com maternal sorriso, quando ali pus os pés pela primeira vez, a curiosidade contida por compreensível timidez.

Fiquei sabendo depois que ela era mãe do poeta Correia da Silva, um dos primeiros modernistas da terra. Suas mãos abriram para mim as portas do mundo da leitura e me conduziram através dele.

Por desconhecer que eu já havia lido Coração, do escritor italiano Edmundo D’Amicis, livro, da primeira à última página, sem uma única ilustração a amenizar a forma compacta do texto, Dona Celuta entendeu ser conveniente colocar-me primeiro em contato com os Contos da Carochinha, de Charles Perrault,  as histórias de Branca de Neve e os 7 anões e de João e Maria, dos Irmãos Grimm, e O soldadinho de Chumbo e O Patinho Feio, de Hans Christian Andersen, algumas em volumes recheados de belas gravuras coloridas, até mais agradáveis de ver do que de ler.

Surpresa com a minha pronta recusa às suas recomendações literárias, mas condescendente com o atrevimento pueril do pirralho que queria mostrar-se adiantado para a idade, levou-me, então, a conhecer as obras do escritor Monteiro Lobato para meninos.

Passei quase um mês inteiro a ler, todas as tardes, os Serões de Dona Benta, Reinações de Narizinho, Emília no país da Gramática, Histórias de Tia Nastácia e Dom Quixote para crianças. Li Os doze trabalhos de Hércules com tamanho envolvimento, que cheguei a sentir nas narinas o pestilento fedor das estrebarias do rei Áugias.
Ainda a usar calças curtas, eu desconhecia o significado da palavra metáfora, mas pressentia que o universo literário de Monteiro Lobato era uma radiografia das entranhas do Brasil. Éramos um país belo e rico. Aqui vivia um povo alegre e generoso. Mas os governantes pareciam estar de costas para a realidade nacional, ignorando as multidões de desvalidos que vegetavam no interior, pés descalços e barrigas infladas por verminoses. Começava a me dar conta de que, para salvar aquela gente, seria preciso alguma coisa mais eficaz do que a Ancilostomina e mais poderosa do que o Biotônico Fontoura, remédios receitados por médicos e farmacêuticos e anunciados no almanaque em que conheci o Jeca Tatu. 

Mas o que me fez despertar para o espírito nacionalista e a crítica social implícitos na literatura infantil lobatiana foi o comentário de um senhor que, em visita às instalações da biblioteca, teve a curiosidade de saber o que eu estava lendo. Ao ver que era O poço do Visconde, passou a mão em minha cabeça, e sentenciou, não sei se em tom de aprovação ou de advertência:
           
- Literatura infantil de Monteiro Lobato, comunismo para crianças.

Eu nem sabia o que era comunismo, mas imaginei que, se estava sendo ensinado, em livros, para meninos como eu, não deveria ser coisa ruim. Indagado a respeito, meu pai me explicou, de forma simplista, que, se o Brasil fosse um país comunista, todas as coisas que existissem aqui – terras, fábricas, lojas comerciais, bancos, casas - seriam propriedade comum do povo, porém sob a administração do governo. Mas eu não sentia o menor entusiasmo em suas palavras.  

Tempos depois, descobri que Lobato não era comunista coisa alguma, nem mesmo socialista. Era um capitalista, isto sim, dotado de visão empresarial incomum, responsável, entre tantos outros empreendimentos, que visavam a modernizar o país, pela indústria brasileira do livro, com a fundação, em 1918, da “Monteiro Lobato e Cia.”, nossa primeira editora.

Sintonizado com os problemas do seu tempo, e vivendo à frente dele, condenou, em contos e artigos, a praga das queimadas, o trabalho do menor, a violência contra mulheres, negros e imigrantes, o desordenado crescimento urbano e os vícios da burocracia estatal.  Estimulava os brasileiros a corromper a língua portuguesa, assim como os lusitanos haviam feito ao latim, e justificava-se com o argumento de que aquilo que os puristas da língua chamavam corrupção os biologistas denominavam evolução.
Nos EUA, país em que trabalhou, de 1926 a 1931, como adido comercial da embaixada do Brasil, continuou a escrever sobre temas polêmicos. Fez publicar o folhetim O Presidente negro e o choque de raças, em que narra, com indisfarçável sentimento racista, a conquista da chefia suprema da nação americana por um candidato de cor. Mas a antevisão do fenômeno político que, em 2008, oitenta anos depois, afinal aconteceu com a eleição de Barak Obama, causou-lhe grandes desgostos.

De volta, trouxe na bagagem a crença de que o nosso subsolo guardava incalculáveis riquezas minerais, como o petróleo, ouro negro responsável pela prosperidade e pujante economia de nossos vizinhos do norte. E acabou preso por ter enviado carta ao presidente Getúlio Vargas, em que denunciava o interesse estrangeiro de negar a existência de jazidas petrolíferas em nosso território, e fazia comentários considerados ofensivos pelo chefe da nação.

Depois de correr de ponta a ponta a obra de Lobato para a minha faixa de idade, descobri os livros de Francisco Marins, escritor, também paulista, que me colocaria em contato com personagens bem mais reais do que a boneca de pano falante, o nobre feito de espiga de milho e o porco elevado à condição nobiliárquica de marquês, que conviviam com cucas, sacis e tantas outras entidades fantásticas saídas do imaginário popular dos sertões brasileiros.

Eram os meninos Tiãozinho, Tico e Dudu, bem mais livres do que Pedrinho e Narizinho, estes presos às barras das saias de Dona Benta e Tia Nastácia. Com eles me identifiquei muito mais, acompanhando-os em suas peripécias para impedir que a propriedade do avô, em Nas terras do Rei Café, fosse tomada por um explorador ganancioso, e nas aventuras em que se envolveram para desvendar o intrigante desaparecimento do burrinho Maracujá, em Os segredos de Taquara-Póca, encontrando forças, coragem e astúcia na misteriosa “flor roxa do samambaial”.

Por algum tempo, ora eu tinha predileção por Monteiro Lobato, ora preferia ler Francisco Marins.

Lobato me ensinou muita coisa: fiquei sabendo um pouco mais de gramática, aritmética, história e geografia; tomei ciência de fatos importantes da história do mundo e entrei na vida de homens cujas invenções mudaram os destinos da humanidade. Conduzido por ele, tomei contato com a mitologia greco-romana, que ainda hoje me fascina, e fui apresentado a Hans Staden.

Muitas vezes, porém, ao correr as páginas de seus livros, ficava com a sensação de continuar em sala de aula, obrigado a aprender e a guardar mentalmente aquilo que lia, para estar afiado nas provas mensais ou na hora da sabatina.

Ler Francisco Marins podia não ser igualmente instrutivo, mas, não raro, era mais deleitoso, porque puro divertimento. Suas histórias tinham a capacidade mágica de transportar-me ao sítio Taquara-Póca, onde eu aprendia a escolher uma boa forquilha para baladeira, a fazer e armar arapucas, a identificar assobios que denunciassem a aproximação do curupira, a descobrir de que animais eram os rastros deixados no chão da floresta.

Talvez tenha sido por isso, pelo cheiro de mato, pelo sabor de coisa verdadeira existente em sua obra, que os livros de Marins, incluindo os da série “Vagalume”, onde ficção e história se misturam e encadeiam, e os romances que escreveu para adultos, tenham sido traduzidos para quinze idiomas e vendido mais de cinco milhões de exemplares, segundo dados da Wikipédia, portal da Internet que o aponta como o único escritor brasileiro a participar da coleção européia Delphin, que reúne os clássicos da literatura infanto-juvenil do mundo inteiro.
           
Quando percebeu que eu já estava no ponto de passar para leituras mais avançadas, Dona Celuta mostrou-me o Tesouro da Juventude, preciosa coleção, com dezoito volumosos tomos, que praticamente tomava toda uma prateleira da maior estante da ala infantil.
Publicado no Brasil, na década de 1920, pela M.W. Jackson Inc. Editores, com introdução de Clóvis Bevilácqua, a avalizar-lhe a qualidade editorial, o Tesouro da Juventude foi apresentado ao público como uma obra que reunia “conhecimentos essenciais, oferecidos de forma adequada ao proveito e entretenimento de meninos”.
Passados mais de cinquenta anos, voltei a procurá-lo. A biblioteca infantil, então, estava localizada em um prédio anexo, a evocar o nome de Viriato Correia. A informação que recebi  foi a de que a coleção, há algum tempo, fora transferida para o setor de obras de referência, ali se encontrando na ilustre companhia da Barsa, da Lidador e de outras enciclopédias e dicionários. 

Pedi o primeiro tomo à bibliotecária que me atendeu e, com sua permissão, continuei a retirar outros da estante, fazendo-o de forma aleatória. Apenas uns dez restavam da edição adquirida em meus tempos de menino; os demais eram de edições posteriores. Mesmo aqueles impressos  posteriormente, tinham as folhas amarelecidas, muitas delas com marcas de dobras e até trechos sublinhados a lápis, a revelarem que haviam sido lidos por muita gente.

O texto do Tesouro da Juventude é de agradável leitura, a seleção dos assuntos é bem cuidada e as adaptações dos clássicos da literatura universal são primorosas. Essas qualidades, que vêm da edição original inglesa, revelam o trabalho de um corpo de escritores, tradutores e editores de alto nível, cujos nomes inexplicavelmente estão ocultos no expediente das edições brasileiras.

Ao tê-lo mais uma vez em minhas mãos e podendo recapitular, com olhar crítico mais apurado, os enriquecedores momentos que me proporcionou, consigui avaliar a importância de sua leitura em minha formação cultural e entender o porquê de ser ele citado, com respeitosa reverência, por tantos laureados homens de letras e profissionais liberais de renome.

Recordei, então, que foi em suas páginas que entrei em contato com as mais importantes obras da literatura universal – a Ilíada e a Odisséia, de Homero; a Divina Comédia, de Dante, que me marcou para sempre com o dístico aterrorizador à porta do Inferno – “laschiate ogni speranza voi che entrate”; Orlando furioso, de Ariosto; Fausto, de Goethe, com o subtítulo o homem que enganou o Diabo; Robinson Crusoé, de Daniel Defoe; Viagens de Gulliver, de  Jonathan Swift; Quincas Borba, de Machado de Assis; Vinte mil léguas submarinas, de Júlio Verne; David Coperfield, de Charles Dickens e O triste fim de Policarpo Quaresma, mostrado como o Dom Quixote brasileiro, e tantas e tantas outras.

No Tesouro da Juventude, descobri também que os horizontes da poesia se estendiam muito além de Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu e Olavo Bilac, bardos sempre presentes nos livros de português do tempo em que fiz o curso primário. O Livro da Poesia traz desde os mais conhecidos poetas parnasianos (Vicente Gimarães, Alceu Vamosi) e simbolistas (Cruz e Souza e Alfonsus Guimarens) brasileiros aos clássicos ingleses (Shelley, T.S. Elliot, Byron) e franceses (Musset, Beaudelaire, Verlaine, Rimbaud).

Remanescente da época da inauguração, também continuava na Biblioteca Pública “Benedito Leite”  a coleção Mundo Pitoresco, em nove tomos, com o selo editorial da M.W. Jackson. Honrando o título, a coleção mostra, com fartura de fotos, gravuras e textos ilustrativos, aquilo que realmente há de interessante na Terra. Nada daqueles registros bizarros ou extravagantes, comuns no Acredite se quiser, de Ripley, usados, em estampas educativas, em meados do século passado, pelos fabricantes do sabonete Eucalol.

Do primeiro ao último tomo, o Mundo Pitoresco aborda aspectos geográficos, etnográficos e históricos, característicos dos cinco continentes e de suas principais regiões, destacando os usos, costumes, crenças, religiões, culinária, vestuário, habitações, em suma, o modo de vida de seus habitantes.   

A geografia era a matéria de minha predileção, desde quando, por insubordinação, havia sido castigado a decorar páginas e páginas do livro de Gaspar de Freitas para o 3º ano primário, incluindo o capítulo que relacionava os principais acidentes geográficos (oceanos, mares, rios, lagos, ilhas, cabos, golfos, penínsulas, montes, vulcões, etc.) dos cinco continentes. Pena que passei a cumprir com prazer.
Por considerar que apenas saber de sua existência era conhecimento pela metade, decidi aprender a localizá-los no Atlas de meus primos Edsel e Edson Filho. Isso me valia muito, em várias situações. Na hora de armar quebra-cabeças do mapa-múndi, eu logo distinguia se uma peça com pequenas ilhas se encaixava na Micronésia, na Polinésia, no Mar Egeu ou no Caribe, conseguia situar-me em fatos históricos e, em razão desses “talentos”, era convidado a participar de conversa de gente grande, na condição de tira-teimas.
   
            Foi graças a uma coleção de biografias de grandes compositores, publicada pela Edições Melhoramentos, ainda existente no acervo da biblioteca infantil da “Benedito Leite”, - J. Sebastian Bach, o menino da Turíngia, Haendel na corte de reis; Joseph Haydn, o camponesinho alegre; Franz Schubert e seus alegres amigos;  Paganini, mestre do violino; Mozart, o menino prodígio; Frederic Chopin, o menino da Polônia - em dois tomos; Ludwig van Beethoven e os sinos do campanário e Robert Schumann, este sem subtítulo – que tomei gosto pela música clássica.

Na primeira aula que tive com Dona Lilah Lisboa de Araújo, professora de Canto Orfeônico do Liceu Maranhense, já então denominado Colégio Estadual do Maranhão, a saudosa mestra perguntou à classe quem conhecia Beethoven, ao que respondi prontamente, arranhando a pronúncia do seu nome completo, em alemão, que ele era um dos maiores e mais importantes compositores de todos os tempos, autor de nove sinfonias, entre elas, a intitulada Heróica, de concertos, sonatas e outras peças musicais conhecidas e aplaudidas no mundo inteiro.

Exímia pianista, mulher de fina educação e sensibilidade, idealizadora da Sociedade de Cultura Artística do Maranhão – SCAM, instituição que animou os artistas e os intelectuais de São Luís, na década de 1950, Dona Lilah convidou-me a ouvi-la tocar peças do gênio cuja vida tanto me entusiasmava. Em sua casa, o magnífico palacete da Rua 28 de Julho, hoje sede da Escola de Música que toma o seu nome, aos acordes da Sonata ao luar, fui musicalmente apresentado a Beethoven.

Familiarizado com a música clássica, tornei-me, por volta de 1954, um dos primeiros sócios da JMB - Juventude Musical Brasileira, instituição criada pelo maestro Eleazar de Carvalho, cujo delegado, no Maranhão, era José Mário Santos, a quem eu admirava, tanto pela brilhante inteligência como pela sonora gargalhada reveladora de sua presença nas sessões do cinema Éden. Como associado da JMB, assisti a vários recitais de canto, piano e violão, e a um filme sobre a vida de Fedor Chaliaplin, grande baixo russo, experiência que me levou a gostar de ópera.

Foi em solenidade realizada no auditório da Biblioteca Pública “Benedito Leite”, como se eu estivesse em minha própria casa, que recebi o certificado de conclusão do curso ginasial, com a glória de ter sido o orador da turma, ainda que, por excesso de faltas no período letivo, devesse ser submetido às provas orais, em segunda chamada. Para minha desdita, não obtive média em três matérias, e fui reprovado.
           
A pecha de repetente foi o merecido castigo que recebi por haver lido muito, mas estudado pouco, numa época em que os mestres não eram obrigados a aprovar alunos relapsos.
           
Todas estas lembranças me assaltaram, na manhã do dia 8 de setembro, ao passar pela Praça do Pantheon, o coração sangrando, por não conseguir identificar, escondido em tapumes, o lugar sagrado em que iniciei longa e proveitosa viagem pelo mundo da leitura.
           
Restaurar a Biblioteca Pública “Benedito Leite” e devolvê-la ao povo de São Luís, em 2012, será o mais belo presente que o Governo do Estado pode oferecer à cidade no ano do seu quarto centenário. 

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