segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Saudades da Biblioteca Pública

Por Sérgio Brito

Elevando-se, imponente, em seu estilo neoclássico, na vasta área do antigo Largo do Quartel, margeado pelas avenidas Gomes de Castro e Silva Maia, em São Luís, a Biblioteca Pública “Benedito Leite”, inaugurada em janeiro de 1951 pelo governador Sebastião Archer da Silva, possuía dimensões consideradas faraônicas para a época.


Com três pisos, sem contar o subsolo, que não sei se, a essa ocasião, abrigava a seção de jornais, o prédio possuía amplas e bem-mobiliadas salas de leitura, arejadas pela brisa constante que soprava do rio Anil, fazendo cantar frondosos oitizeiros, que ainda hoje estão lá. Pena que, agora, esterilizados pelo dióxido de carbono, já não dêem frutos, e sua sonoridade seja abafada pelo barulho de intenso tráfego de veículos. 

Quase toda a ala direita do primeiro andar era ocupada pela biblioteca infantil, com suas estantes, mesas e cadeiras de pau-marfim, artisticamente trabalhadas. Ainda bem nítidas na memória, guardo também as feições de Dona Celuta, simpática funcionária que me acolheu com maternal sorriso, quando ali pus os pés pela primeira vez, a curiosidade contida por compreensível timidez.

Fiquei sabendo depois que ela era mãe do poeta Correia da Silva, um dos primeiros modernistas da terra. Suas mãos abriram para mim as portas do mundo da leitura e me conduziram através dele.

Por desconhecer que eu já havia lido Coração, do escritor italiano Edmundo D’Amicis, livro, da primeira à última página, sem uma única ilustração a amenizar a forma compacta do texto, Dona Celuta entendeu ser conveniente colocar-me primeiro em contato com os Contos da Carochinha, de Charles Perrault,  as histórias de Branca de Neve e os 7 anões e de João e Maria, dos Irmãos Grimm, e O soldadinho de Chumbo e O Patinho Feio, de Hans Christian Andersen, algumas em volumes recheados de belas gravuras coloridas, até mais agradáveis de ver do que de ler.

Surpresa com a minha pronta recusa às suas recomendações literárias, mas condescendente com o atrevimento pueril do pirralho que queria mostrar-se adiantado para a idade, levou-me, então, a conhecer as obras do escritor Monteiro Lobato para meninos.

Passei quase um mês inteiro a ler, todas as tardes, os Serões de Dona Benta, Reinações de Narizinho, Emília no país da Gramática, Histórias de Tia Nastácia e Dom Quixote para crianças. Li Os doze trabalhos de Hércules com tamanho envolvimento, que cheguei a sentir nas narinas o pestilento fedor das estrebarias do rei Áugias.
Ainda a usar calças curtas, eu desconhecia o significado da palavra metáfora, mas pressentia que o universo literário de Monteiro Lobato era uma radiografia das entranhas do Brasil. Éramos um país belo e rico. Aqui vivia um povo alegre e generoso. Mas os governantes pareciam estar de costas para a realidade nacional, ignorando as multidões de desvalidos que vegetavam no interior, pés descalços e barrigas infladas por verminoses. Começava a me dar conta de que, para salvar aquela gente, seria preciso alguma coisa mais eficaz do que a Ancilostomina e mais poderosa do que o Biotônico Fontoura, remédios receitados por médicos e farmacêuticos e anunciados no almanaque em que conheci o Jeca Tatu. 

Mas o que me fez despertar para o espírito nacionalista e a crítica social implícitos na literatura infantil lobatiana foi o comentário de um senhor que, em visita às instalações da biblioteca, teve a curiosidade de saber o que eu estava lendo. Ao ver que era O poço do Visconde, passou a mão em minha cabeça, e sentenciou, não sei se em tom de aprovação ou de advertência:
           
- Literatura infantil de Monteiro Lobato, comunismo para crianças.

Eu nem sabia o que era comunismo, mas imaginei que, se estava sendo ensinado, em livros, para meninos como eu, não deveria ser coisa ruim. Indagado a respeito, meu pai me explicou, de forma simplista, que, se o Brasil fosse um país comunista, todas as coisas que existissem aqui – terras, fábricas, lojas comerciais, bancos, casas - seriam propriedade comum do povo, porém sob a administração do governo. Mas eu não sentia o menor entusiasmo em suas palavras.  

Tempos depois, descobri que Lobato não era comunista coisa alguma, nem mesmo socialista. Era um capitalista, isto sim, dotado de visão empresarial incomum, responsável, entre tantos outros empreendimentos, que visavam a modernizar o país, pela indústria brasileira do livro, com a fundação, em 1918, da “Monteiro Lobato e Cia.”, nossa primeira editora.

Sintonizado com os problemas do seu tempo, e vivendo à frente dele, condenou, em contos e artigos, a praga das queimadas, o trabalho do menor, a violência contra mulheres, negros e imigrantes, o desordenado crescimento urbano e os vícios da burocracia estatal.  Estimulava os brasileiros a corromper a língua portuguesa, assim como os lusitanos haviam feito ao latim, e justificava-se com o argumento de que aquilo que os puristas da língua chamavam corrupção os biologistas denominavam evolução.
Nos EUA, país em que trabalhou, de 1926 a 1931, como adido comercial da embaixada do Brasil, continuou a escrever sobre temas polêmicos. Fez publicar o folhetim O Presidente negro e o choque de raças, em que narra, com indisfarçável sentimento racista, a conquista da chefia suprema da nação americana por um candidato de cor. Mas a antevisão do fenômeno político que, em 2008, oitenta anos depois, afinal aconteceu com a eleição de Barak Obama, causou-lhe grandes desgostos.

De volta, trouxe na bagagem a crença de que o nosso subsolo guardava incalculáveis riquezas minerais, como o petróleo, ouro negro responsável pela prosperidade e pujante economia de nossos vizinhos do norte. E acabou preso por ter enviado carta ao presidente Getúlio Vargas, em que denunciava o interesse estrangeiro de negar a existência de jazidas petrolíferas em nosso território, e fazia comentários considerados ofensivos pelo chefe da nação.

Depois de correr de ponta a ponta a obra de Lobato para a minha faixa de idade, descobri os livros de Francisco Marins, escritor, também paulista, que me colocaria em contato com personagens bem mais reais do que a boneca de pano falante, o nobre feito de espiga de milho e o porco elevado à condição nobiliárquica de marquês, que conviviam com cucas, sacis e tantas outras entidades fantásticas saídas do imaginário popular dos sertões brasileiros.

Eram os meninos Tiãozinho, Tico e Dudu, bem mais livres do que Pedrinho e Narizinho, estes presos às barras das saias de Dona Benta e Tia Nastácia. Com eles me identifiquei muito mais, acompanhando-os em suas peripécias para impedir que a propriedade do avô, em Nas terras do Rei Café, fosse tomada por um explorador ganancioso, e nas aventuras em que se envolveram para desvendar o intrigante desaparecimento do burrinho Maracujá, em Os segredos de Taquara-Póca, encontrando forças, coragem e astúcia na misteriosa “flor roxa do samambaial”.

Por algum tempo, ora eu tinha predileção por Monteiro Lobato, ora preferia ler Francisco Marins.

Lobato me ensinou muita coisa: fiquei sabendo um pouco mais de gramática, aritmética, história e geografia; tomei ciência de fatos importantes da história do mundo e entrei na vida de homens cujas invenções mudaram os destinos da humanidade. Conduzido por ele, tomei contato com a mitologia greco-romana, que ainda hoje me fascina, e fui apresentado a Hans Staden.

Muitas vezes, porém, ao correr as páginas de seus livros, ficava com a sensação de continuar em sala de aula, obrigado a aprender e a guardar mentalmente aquilo que lia, para estar afiado nas provas mensais ou na hora da sabatina.

Ler Francisco Marins podia não ser igualmente instrutivo, mas, não raro, era mais deleitoso, porque puro divertimento. Suas histórias tinham a capacidade mágica de transportar-me ao sítio Taquara-Póca, onde eu aprendia a escolher uma boa forquilha para baladeira, a fazer e armar arapucas, a identificar assobios que denunciassem a aproximação do curupira, a descobrir de que animais eram os rastros deixados no chão da floresta.

Talvez tenha sido por isso, pelo cheiro de mato, pelo sabor de coisa verdadeira existente em sua obra, que os livros de Marins, incluindo os da série “Vagalume”, onde ficção e história se misturam e encadeiam, e os romances que escreveu para adultos, tenham sido traduzidos para quinze idiomas e vendido mais de cinco milhões de exemplares, segundo dados da Wikipédia, portal da Internet que o aponta como o único escritor brasileiro a participar da coleção européia Delphin, que reúne os clássicos da literatura infanto-juvenil do mundo inteiro.
           
Quando percebeu que eu já estava no ponto de passar para leituras mais avançadas, Dona Celuta mostrou-me o Tesouro da Juventude, preciosa coleção, com dezoito volumosos tomos, que praticamente tomava toda uma prateleira da maior estante da ala infantil.
Publicado no Brasil, na década de 1920, pela M.W. Jackson Inc. Editores, com introdução de Clóvis Bevilácqua, a avalizar-lhe a qualidade editorial, o Tesouro da Juventude foi apresentado ao público como uma obra que reunia “conhecimentos essenciais, oferecidos de forma adequada ao proveito e entretenimento de meninos”.
Passados mais de cinquenta anos, voltei a procurá-lo. A biblioteca infantil, então, estava localizada em um prédio anexo, a evocar o nome de Viriato Correia. A informação que recebi  foi a de que a coleção, há algum tempo, fora transferida para o setor de obras de referência, ali se encontrando na ilustre companhia da Barsa, da Lidador e de outras enciclopédias e dicionários. 

Pedi o primeiro tomo à bibliotecária que me atendeu e, com sua permissão, continuei a retirar outros da estante, fazendo-o de forma aleatória. Apenas uns dez restavam da edição adquirida em meus tempos de menino; os demais eram de edições posteriores. Mesmo aqueles impressos  posteriormente, tinham as folhas amarelecidas, muitas delas com marcas de dobras e até trechos sublinhados a lápis, a revelarem que haviam sido lidos por muita gente.

O texto do Tesouro da Juventude é de agradável leitura, a seleção dos assuntos é bem cuidada e as adaptações dos clássicos da literatura universal são primorosas. Essas qualidades, que vêm da edição original inglesa, revelam o trabalho de um corpo de escritores, tradutores e editores de alto nível, cujos nomes inexplicavelmente estão ocultos no expediente das edições brasileiras.

Ao tê-lo mais uma vez em minhas mãos e podendo recapitular, com olhar crítico mais apurado, os enriquecedores momentos que me proporcionou, consigui avaliar a importância de sua leitura em minha formação cultural e entender o porquê de ser ele citado, com respeitosa reverência, por tantos laureados homens de letras e profissionais liberais de renome.

Recordei, então, que foi em suas páginas que entrei em contato com as mais importantes obras da literatura universal – a Ilíada e a Odisséia, de Homero; a Divina Comédia, de Dante, que me marcou para sempre com o dístico aterrorizador à porta do Inferno – “laschiate ogni speranza voi che entrate”; Orlando furioso, de Ariosto; Fausto, de Goethe, com o subtítulo o homem que enganou o Diabo; Robinson Crusoé, de Daniel Defoe; Viagens de Gulliver, de  Jonathan Swift; Quincas Borba, de Machado de Assis; Vinte mil léguas submarinas, de Júlio Verne; David Coperfield, de Charles Dickens e O triste fim de Policarpo Quaresma, mostrado como o Dom Quixote brasileiro, e tantas e tantas outras.

No Tesouro da Juventude, descobri também que os horizontes da poesia se estendiam muito além de Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu e Olavo Bilac, bardos sempre presentes nos livros de português do tempo em que fiz o curso primário. O Livro da Poesia traz desde os mais conhecidos poetas parnasianos (Vicente Gimarães, Alceu Vamosi) e simbolistas (Cruz e Souza e Alfonsus Guimarens) brasileiros aos clássicos ingleses (Shelley, T.S. Elliot, Byron) e franceses (Musset, Beaudelaire, Verlaine, Rimbaud).

Remanescente da época da inauguração, também continuava na Biblioteca Pública “Benedito Leite”  a coleção Mundo Pitoresco, em nove tomos, com o selo editorial da M.W. Jackson. Honrando o título, a coleção mostra, com fartura de fotos, gravuras e textos ilustrativos, aquilo que realmente há de interessante na Terra. Nada daqueles registros bizarros ou extravagantes, comuns no Acredite se quiser, de Ripley, usados, em estampas educativas, em meados do século passado, pelos fabricantes do sabonete Eucalol.

Do primeiro ao último tomo, o Mundo Pitoresco aborda aspectos geográficos, etnográficos e históricos, característicos dos cinco continentes e de suas principais regiões, destacando os usos, costumes, crenças, religiões, culinária, vestuário, habitações, em suma, o modo de vida de seus habitantes.   

A geografia era a matéria de minha predileção, desde quando, por insubordinação, havia sido castigado a decorar páginas e páginas do livro de Gaspar de Freitas para o 3º ano primário, incluindo o capítulo que relacionava os principais acidentes geográficos (oceanos, mares, rios, lagos, ilhas, cabos, golfos, penínsulas, montes, vulcões, etc.) dos cinco continentes. Pena que passei a cumprir com prazer.
Por considerar que apenas saber de sua existência era conhecimento pela metade, decidi aprender a localizá-los no Atlas de meus primos Edsel e Edson Filho. Isso me valia muito, em várias situações. Na hora de armar quebra-cabeças do mapa-múndi, eu logo distinguia se uma peça com pequenas ilhas se encaixava na Micronésia, na Polinésia, no Mar Egeu ou no Caribe, conseguia situar-me em fatos históricos e, em razão desses “talentos”, era convidado a participar de conversa de gente grande, na condição de tira-teimas.
   
            Foi graças a uma coleção de biografias de grandes compositores, publicada pela Edições Melhoramentos, ainda existente no acervo da biblioteca infantil da “Benedito Leite”, - J. Sebastian Bach, o menino da Turíngia, Haendel na corte de reis; Joseph Haydn, o camponesinho alegre; Franz Schubert e seus alegres amigos;  Paganini, mestre do violino; Mozart, o menino prodígio; Frederic Chopin, o menino da Polônia - em dois tomos; Ludwig van Beethoven e os sinos do campanário e Robert Schumann, este sem subtítulo – que tomei gosto pela música clássica.

Na primeira aula que tive com Dona Lilah Lisboa de Araújo, professora de Canto Orfeônico do Liceu Maranhense, já então denominado Colégio Estadual do Maranhão, a saudosa mestra perguntou à classe quem conhecia Beethoven, ao que respondi prontamente, arranhando a pronúncia do seu nome completo, em alemão, que ele era um dos maiores e mais importantes compositores de todos os tempos, autor de nove sinfonias, entre elas, a intitulada Heróica, de concertos, sonatas e outras peças musicais conhecidas e aplaudidas no mundo inteiro.

Exímia pianista, mulher de fina educação e sensibilidade, idealizadora da Sociedade de Cultura Artística do Maranhão – SCAM, instituição que animou os artistas e os intelectuais de São Luís, na década de 1950, Dona Lilah convidou-me a ouvi-la tocar peças do gênio cuja vida tanto me entusiasmava. Em sua casa, o magnífico palacete da Rua 28 de Julho, hoje sede da Escola de Música que toma o seu nome, aos acordes da Sonata ao luar, fui musicalmente apresentado a Beethoven.

Familiarizado com a música clássica, tornei-me, por volta de 1954, um dos primeiros sócios da JMB - Juventude Musical Brasileira, instituição criada pelo maestro Eleazar de Carvalho, cujo delegado, no Maranhão, era José Mário Santos, a quem eu admirava, tanto pela brilhante inteligência como pela sonora gargalhada reveladora de sua presença nas sessões do cinema Éden. Como associado da JMB, assisti a vários recitais de canto, piano e violão, e a um filme sobre a vida de Fedor Chaliaplin, grande baixo russo, experiência que me levou a gostar de ópera.

Foi em solenidade realizada no auditório da Biblioteca Pública “Benedito Leite”, como se eu estivesse em minha própria casa, que recebi o certificado de conclusão do curso ginasial, com a glória de ter sido o orador da turma, ainda que, por excesso de faltas no período letivo, devesse ser submetido às provas orais, em segunda chamada. Para minha desdita, não obtive média em três matérias, e fui reprovado.
           
A pecha de repetente foi o merecido castigo que recebi por haver lido muito, mas estudado pouco, numa época em que os mestres não eram obrigados a aprovar alunos relapsos.
           
Todas estas lembranças me assaltaram, na manhã do dia 8 de setembro, ao passar pela Praça do Pantheon, o coração sangrando, por não conseguir identificar, escondido em tapumes, o lugar sagrado em que iniciei longa e proveitosa viagem pelo mundo da leitura.
           
Restaurar a Biblioteca Pública “Benedito Leite” e devolvê-la ao povo de São Luís, em 2012, será o mais belo presente que o Governo do Estado pode oferecer à cidade no ano do seu quarto centenário. 

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Photografia em tom sépia

Por Pergentino Holanda
A São Luís memorável (e amável) sobrevive apenas naquelas photos já amarelecidas, no tom daqueles antigos filmes do Tarzan.
Na praça Pedro II, com vistas para a Baía de São Marcos e o pé direito na Praça Benedito Leite, o Hotel Central era uma espécie de Copacabana Palace de São Luís, nos anos 1950.
Paris tem o Hotel Crillon, Londres o Savoy, Nova York o Waldorf Astoria. Toda cidade que se preze tem um hotel que se confunde com seus marcos históricos – uma espécie de “Land Mark” que lhe realça a identidade e ajuda a contar a sua evolução urbana.
Admitamos que o Hotel Central não era nenhum Plaza de Nova York, nenhum Claridge’s de Londres. Mas era o Hotel Central, de São Luís, apesar do estilo “miscelânico”, do jeito um tanto anárquico, abrigando uma agência da Varig no andar térreo.
O Hotel Central parecia um estabelecimento “livre” de Casablanca, no Marrocos ocupado, um imóvel ideal para receber o “Café Amérikaine”, em cujo térreo poderia irromper, a qualquer momento, a Marseilleise, puxada por Viktor Lazlo, o herói da Resistência.
No meu imaginário romântico, os encontros furtivos de Ilse (Ingrid Bergman) com Rick (Humphrey Bogart) estariam acontecendo num apartamento do quarto andar, voltado para o Palácio dos Leões e o sol poente, paisagem em cuja moldura sangraria um daqueles ocasos raros que fizeram a fama da Ilha.
O Hotel Central, o Mercado da Praia Grande ao fundo. Desse cenário, só o último figurino está de pé. O velho hotel me parece um prédio abandonado.
O abandono do velho prédio está lá, a céu aberto, como um furúnculo de vergonha. Ninguém sabe por que o poder público não decide apoiar o velho Hotel Central.
A São Luís humana, amiga do mar e de si mesma, sobrevive apenas nas velhas fotografias em tom sépia.

Um exercício de imitação

Por Sérgio Brito
No tempo em que a revista “O Cruzeiro”, fundada por Assis Chateaubriand, ostentava em seu expediente, com natural envaidecimento, os nomes de Rachel de Queirós, Franklin de Oliveira, Austregésilo de Ataíde e Millor Fernandes, entre outros não menos ilustres, um cronista de quem poucos ainda lembram, José Alberto Gueiros, imaginou, em crônica sobre a ressaca, como a desagradável sensação física causada pela ingestão de bebidas alcoólicas em excesso seria descrita por escritores famosos. Além da confreira Raquel, que, para ele, encontraria semelhanças no gosto nada agradável de um cacho de jurubebas, o cronista recorreu a Camões, de quem, se ainda estou lembrado, copiou o estilo em versos brancos: “E a boca me sabendo amargo travo,/ fui em busca de fonte de água fria,/ onde, ao ma vertê-la sobre o dorso,/ânimo novo e ledo recobrasse”. 
A perfeita imitação de formas de escrever tão distintas, conseguida com facilidade pelo versátil talento de Gueiros, era assunto que o saudoso amigo Murilo Sarney costumava puxar, vez por outra, em conversas literárias na nossa mocidade, incitando-me a repetir a façanha.
A propósito, se considerado o fato de que já completei sessenta e quinze anos, estou certo de que mesmo o mais desatento dos leitores logo perceberá ser bem antigo o desafio que agora ouso enfrentar, confesso que com pouca coragem e muito medo de cair no ridículo.
Daí por que, em face da dificuldade de encontrar um tema que tornasse menos penoso e passível de vexame o exercício de estilística a que me propus, decidi recorrer à história do Maranhão, nela manifestando, por puro comodismo, preferência pelo assaz conhecido episódio da fundação da quase quatrocentona urbe em que vivemos. 
Com a garantia de poder valer-me dos dados e personagens do acontecimento escolhido, enchi-me de brios e parti para a ousada empreitada de descrevê-lo, em estância de oitos versos decassílabos, a imaginar pretensiosamente que assim o faria o imortal cantor de “Os lusíadas”: "Ao correr o oriente, Portugal/ desvalida deixou a altaneira/ Terra Brasilis de Álvares Cabral,/ onde, ao norte, um gaulês pôs a bandeira,/ de uma França dita equinocial,/ e fundou real cidade na ilha Grande,/ notícia a que se opõe Lourdes Lauande".
Vencido, bem ou mal, o primeiro obstáculo, e sem temer represálias pelo sacrilégio de macular a lira camoniana, resolvi mexer noutro vespeiro. Imaginei, então, com que palavras, e em que tom, um membro do Comitê de Defesa da Ilha de São Luís narraria o evento. E o resultado obtido foi este:
 “Com a criminosa complacência de Japiaçu, cacique dos Tupinambás, a França Equinocial foi instalada em Upaon-Açu, neste dia 8 de setembro de 1612. Segundo denúncias trazidas a esta entidade, a senhora Maria de Médici, rainha regente dos franceses, está por trás dos aventureiros Daniel de La Touche e François de Rasily, principais sócios da empresa, cuja operação se prenuncia a mais lesiva aos interesses nacionais, desde que o imperialista Villegaignon e seu capitalismo selvagem foram escorraçados do Rio de Janeiro. Lideranças locais que negam legitimidade ao cacique para negociar concessão de terras e oferecer incentivos aos invasores, prometem lutar contra o empreendimento, a não ser que haja garantia de emprego para os nativos e que a implantação do projeto seja precedida de estudos de impacto ambiental, medida que prevenirá eventuais danos ao ecossistema da ilha”.   
Não satisfeito com os resultados obtidos, parti para empreitada mais ambiciosa ainda - a de idealizar a manifestação de Zé Limeira sobre o assunto, vacinando-me para não ser contaminado pela pornografia versada presente em quase toda a sua obra. Como se estivesse a psicografar o surrealista poeta popular, que ganhou nomeada com a distorção absurda de fatos históricos, a estrofe de nove versos com que encerro esta crônica saiu de uma só vez:   
"Deu hoje n'O Imparcial
que o senhor Ravardière,
da França Equinocial,
desembarcou no Calhau,
numa área da Franere.
A mandado de seu rei,
veio fundar São Luís,
mas, sem ordem do Sarney,
não fez o que história diz".

Coitada São Luís

Por Américo Azevedo Neto
Todo mundo gosta da possibilidade de vir a ser uma pessoa sem similares. Uma pessoa única. Todos - parece -   aspiramos ser uns indivíduos  impares ou então dispondo de alguma característica  que não seja comum aos outros. Essa individualidade  é sonho para a maioria das pessoas. Para algumas, por sinal, chega a ser quase meta.
Isto vale também para os centros urbanos. E tanto vale que a  maioria da publicidade produzida para atrair possíveis turistas é feita a partir de bens – físicos ou culturais – que só esta ou aquela cidade tem o privilegio de dispor para oferecer como produto.
Por outro lado verificamos que alguns bens urbanos são encontrados na maioria delas. Por exemplo, aquela avenida aqui de São Luis, chamada de Av dos Holandeses, é uma avenida muito bonita, mas extremamente comum à grande maioria das cidades. Em qualquer lugar do mundo, a gente encontra uma avenida assim: larga, razoavelmente asfaltada, ladeada por belas lojas, ótimos bares, elegantes cafés, além de um trafego conturbado, mas charmoso, feito por grande quantidade de carros de luxo.  Um bonito instante de modernidade, é verdade, mas uma avenida assim, quase todas as cidades de porte médio do mundo, também tem.
São Luis, no entanto, dispõe de um bem que só ela - ou melhor dizendo – quase nenhuma  possui:  um bairro (Vê bem: não é uma rua, é um bairro!) que é um belo  e raro exemplo de  determinado momento de   específica civilização: o nosso Centro Histórico.
Nós temos os dois exemplos: a Avenida dos Holandeses e a Praia Grande. Mas em relação a isso, nós nos portamos como se a Praia Grande  fosse comum a todas as cidades e a Avenida dos Holandeses fosse um instante raríssimo de paisagem urbana. Tal atitude é, no mínimo, - essa sim! - uma burrice de  raro brilho e uma insensibilidade das mais incomuns.
Chegaremos – no ano que vem – aos quatrocentos anos de São Luis. Uma bela idade que solicita uma bela festa. Mas parece que a  estrela dessa festa será aquela avenida acompanhada de outras similares. A Praia Grande – salvo engano – continuará a disposição de turistas desavisados e putas avisadíssimas. Ou então de algum instante de demagógico festejo. E se digo demagógico é porque só aceitaria algo que não fosse assim qualificado se fosse uma ação ampla, lúcida e principalmente constante de conservação e enriquecimento daquele  tão belo, tão raro e tão desprezado bairro.
Se alguém – Estado ou Município – quer fazer uma festa com as mesmas dimensões e importância da idade da aniversariante, então que crie um pouco de atitude (Será mesmo atitude que falta?) e cuide desse nosso bem único e ímpar: a Praia Grande. Afinal isso não é nem um patrimônio nosso: é da humanidade, do qual, por sinal,   nós somos apenas fiéis depositários. Porem, por enquanto, infelizmente,  nisso de fiel depositário,  a gente não está   conseguindo nem ser fiel nem depositário. 

A Constituição da França Equinocial

Por Félix Alberto Lima
Oficialmente instalados em São Luís no dia 8 de setembro de 1612, com a fundação do Forte de São Luís, os franceses não tardaram a criar o primeiro documento que regeria a nova colônia. No dia 1º de novembro daquele ano, Daniel de La Touche, Cavaleiro e Senhor de La Ravardière, e François de Razilly assinaram o documento denominado Leis Fundamentais da Colônia da França Equinocial. O texto tem um valor histórico incomensurável e é considerado por alguns como a primeira constituição das Américas. A Constituição da França Equinocial é, portanto, uma espécie de registro de nascimento de São Luís, com regras severas que estabeleceriam a convivência harmoniosa entre os ocupantes da terra nova e os nativos tupinambás.  
As leis fundamentais são especialmente cuidadosas, pelo menos no papel, com os índios e os padres capuchinhos. Para tanto, estabelecem nas primeiras linhas a obediência e respeito a Deus e instituem a religião Católica, Apostólica e Romana para os silvícolas. Em um dos trechos do documento, os emissários da corte francesa ordenam que não se cometa adultério, por amor ou violência, com as mulheres dos índios, sob pena de morte, “pois seria isso não só a ruína da alma do cristão, mas também a da colônia”. Igual punição seria atribuída ainda aos que violassem as mulheres solteiras da colônia.
Atos desonestos praticados contra as filhas dos índios – o que provavelmente seria o abuso sexual - transformariam o infrator, na primeira tentação, em escravo na colônia por um período de um mês. Na segunda tentação, seria amarrado com ferro aos pés por dois meses. Na terceira vez, estaria sujeito ao julgamento que a missão entendesse como justo – o enforcamento, por exemplo.
A pena de forca, aliás, era atribuída a quem cometesse furto pela segunda vez – em casos de “réu primário”, o infrator era açoitado ao pé da força, ao som da corneta, e condenado à suspensão de salários e outros benefícios por um ano. Acaso o furto fosse praticado por empregado doméstico, ainda que pela primeira vez, a forca era o caminho natural. 
Leia a íntegra do documento:
Leis Fundamentais da Colônia da França Equinocial
Em nome de Sua Majestade, nós, Daniel de La Touche, Cavaleiro e Senhor de La Ravardière, François de Razilly, também Cavaleiro, Senhor do dito lugar e de Aunelles, procurador do alto e poderoso Senhor Nicolas de Harlay, Cavaleiro, Senhor de Sancy, Barão de Molle e Gros-Bois, Conselheiro de Estado e do Conselho Privado do Rei, loco-tenentes-generais de Sua Majestade nas Índias Ocidentais - tendo empreendido, por graça de Deus, o estabelecimento de uma colônia francesa no Maranhão e terras adjacentes, e a conversão dos habitantes ao cristianismo, de acordo com as intenções do Rei de França, nosso Soberano e Senhor, e de conformidade com o poder que nos outorgou Sua Majestade, como consta das cartas patentes que nos deu, e ainda em obediência à autoridade e à vontade da Rainha Regente, nossa Soberana e Senhora, julgamos necessário e conveniente, antes de qualquer outro alicerce, decretar, para esta colônia, as mais santas leis, e as mais adequadas, na medida do possível, ao nosso princípio, tendo por certo que sem a Justiça ordenada por Deus aos homens, sua imagem, não pode existir república alguma. Portanto, reconhecendo a graça, a bondade e a misericórdia demonstradas por Deus ao conduzir-nos tão felizmente a bom porto, começaremos pelas ordenações que dizem especialmente respeito a sua honra e a sua glória.
Ordenamos, pois, expressamente, a todos, quaisquer que sejam qualidades e condições, que temam, sirvam e honrem a Deus, observem seus santos mandamentos e prometam não estimar nem empregar senão os que souberem ter essa santa e reta intenção;
Ordenamos que não blasfemem em Seu santo nome, sob pena de multa para os pobres de França arbitrada pelo Conselho de conformidade com a qualidade das pessoas, até a terceira vez, devendo na quarta ser punido corporalmente o blasfemador, segundo sua qualidade;
Ordenamos a todos e a quem quer que seja, que honrem e respeitem os reverendos padres capuchinhos, enviados por Sua Majestade a fim de implantarem entre os índios a religião Católica, Apostólica e Romana, sob pena de serem punidos os infratores segundo o caso e a ofensa perpetrada;
Ordenamos que ninguém, qualquer que seja a condição, embarace ou perturbe os ditos capuchinhos no exercício da religião ou de sua missão de conversão das almas dos índios, isso sob pena de morte;
Depois de estabelecido nos artigos supramencionados o que diz respeito principalmente à glória de Deus, determinamos agora o que se relaciona com a honra de nosso Rei, o qual houve por bem distinguir-nos com sua escolha para representá-lo neste país. Ordenamos, pois, que ninguém atente contra nossas pessoas ou contra a vida da colônia, por meio de parricídios, atentados, traições, monopólios, discursos feitos no intento de desgostar os habitantes, e cousas semelhantes, e isso sob pena de ser o infrator considerado criminoso de lesa-majestade e condenado à morte, sem esperança de remissão;
Ordenamos expressamente aos que tiverem conhecimento de atos tão perniciosos, que os revelem incontinente, sob pena de igual castigo;
E como os membros de um corpo não podem existir sem um chefe que os dirija, ordenamos que cumpram todos os seus deveres para conosco e nos prestem a obediência que nos é devida, de acordo com a intenção de Sua Majestade, e empreguem suas forças e disponham de suas vidas em benefício desta colônia, em todas as ocasiões, empresas e descobertas necessárias, que porventura ocorram, sob pena de serem considerados covardes e tratados segundo sua infidelidade e desobediência.
Depois de estabelecido o que diz respeito à honra e ao serviço do Rei, representado em nossas pessoas, assim como ao bem-estar e à segurança desta colônia, ordenamos, para manutenção desta companhia e da sociedade, que vivam todos em paz e amizade, respeitem-se mutuamente, segundo as condições e qualidades pessoais, e desculpem uns aos outros suas fraquezas, como Deus manda, e isso sob pena de serem considerados perturbadores do sossego público;
Ordenamos que o edito relativo aos duelos, baixado pelo invicto monarca de feliz memória, Henrique o Grande, nosso falecido Rei, que Deus haja, seja estritamente observado em sua plenitude; e juramos nós jamais fazer algo em contrário, quaisquer que sejam as considerações, bem como não perdoar aos infratores. Por isso, proibimos expressamente aos principais de nossa companhia que jamais intercedam a favor dos faltosos, sob pena de nos desagradarem e passarem pelo vexame de uma negativa;
Ordenamos que o autor de qualquer homicídio, a menos que perpetrado comprovadamente em legítima defesa, seja punido de morte para exemplo;
Ordenamos que quem quer que seja, convencido de falso testemunho contra quem quer que seja, sofra a pena que caberia ao acusado;
Ordenamos que quem quer se encontre furtando, seja, da primeira vez, açoitado ao pé da forca, ao som da corneta, e sirva durante um ano nas obras públicas, com perda, nesse espaço de tempo, de todas as dignidades, salários e proveitos; da segunda vez, seja o infrator enforcado. Em se tratando de criado doméstico, seja já no primeiro roubo enforcado;
Depois de estabelecido o que diz respeito a esta companhia, tanto com referência aos bons costumes, relações mútuas, proteção de suas vidas e honras, como à segurança de seus bens, ordenamos, para a conservação dos índios entregues a nossa proteção, e também para atraí-los pela doçura ao conhecimento de nossas leis humanas e divinas, que ninguém os espanque, injurie, ultraje, ou mate, sob pena de sofrer castigo idêntico à ofensa;
Ordenamos que não se cometa adultério, por amor ou violência, com as mulheres dos índios, sob pena de morte, pois seria isso não só a ruína da alma do cristão, mas também a da colônia; igualmente ordenamos, sob pena idêntica, que não se violem as mulheres solteiras;
Ordenamos que não se pratiquem quaisquer atos desonestos com as filhas dos índios, sob pena, da primeira vez, de servir o delinqüente como escravo na colônia por espaço de um mês; da segunda, de trazer ferros aos pés por dois meses; da terceira, de ser conduzido a nossa presença para o castigo que julgarmos justo;
Proibimos ainda quaisquer roubos contra os índios, seja de suas roças, seja de outras coisas que lhes pertençam, sob as penas supramencionadas.
E para que tudo fique claro e bem acertado de uma vez por todas, ordenamos sejam estas ordenações lidas e tornadas públicas na presença de todos e registradas como leis fundamentais e invioláveis na secretaria geral deste Estado e colônia, para serem consultadas quando necessário. Em testemunho do que assinamos as presentes ordenações com o nosso próprio punho; e serão subscritas por um de nossos conselheiros, secretário ordinário. Forte de São Luís, Maranhão, dia de Todos os Santos, 1º de novembro de 1612, (aa) Raverdière - Razilly. Pelos meus senhores: (a) Abraão.